Entenda como vai funcionar a vacina nasal contra a COVID-19

 

Uma vacina 100% brasileira, com aplicação nasal, baixo custo e potencial de produzir uma das mais robustas respostas imunológicas contra o coronavírus causador da COVID-19, o Sars-CoV-2, está a caminho. Em desenvolvimento no Instituto de Investigação em Imunologia (iii), sediado no Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (InCor), em São Paulo (SP), e com a participação de cientistas de diversas instituições nacionais, a nova vacina se beneficia de estratégias que vão além daquelas testadas até aqui.

Veja na animação a seguir e leia mais abaixo.

 

Isso porque a maioria dos estudos para o desenvolvimento de vacinas contra o Sars-CoV-2 se concentra na produção de anticorpos neutralizantes para a proteína spike (espícula), presente no coronavírus e que se liga a um receptor nas células do organismo infectado, a molécula ECA2 (enzima conversora da angiotensina 2). Essa “conexão” ocorre por meio do domínio de ligação ao receptor (RBD, na sigla em inglês), a parte da espícula mais envolvida na interação do vírus com a ECA2. As vacinas introduzem no organismo um vírus inativado ou mesmo a proteína spike sozinha, ou parte dela, para desencadear uma resposta imunológica de forma rápida, induzindo a produção de anticorpos – a resposta humoral – e a ativação de linfócitos T, células do sistema imune produzidas no timo – a resposta celular. Tudo isso como se estivesse havendo uma infecção de fato. Com o estímulo da vacina, é gerada memória imunológica e, quando o indivíduo vacinado entra em contato com o vírus, seu sistema imune é capaz de “se lembrar”, ativando-se rapidamente e desenvolvendo mecanismos efetores de proteção.

Ocorre que há diversas formas de o corpo humano responder a agentes infecciosos, envolvendo a ativação de vários tipos celulares da resposta imune; mas, devido à urgência por uma imunização massiva, o tempo das primeiras vacinas foi escasso e não houve muita chance para se encontrarem os melhores alvos para respostas imunológicas antivirais mais robustas, envolvendo, também, os linfócitos T.

Elas estão sendo estudadas no iii, mais especialmente a combinação da resposta humoral com a celular – que demonstrou, recentemente, ser essencial para a eliminação do vírus por pacientes que tiveram COVID-19: acredita-se que cerca de 1/3 das infecções em assintomáticos se resolve com a ação dos linfócitos T.

Respostas humoral e celular juntas

O interesse é fazer com que o organismo produza linfócitos T citotóxicos, que reconhecem células infectadas e as matam, impedindo a multiplicação viral. Uma vacina ideal ativa esse mecanismo, além dos linfócitos T auxiliadores (helpers), que ajudam os demais a se tornarem citotóxicos efetores – com capacidade de aniquilar o vírus antes que ele se replique no organismo. Ao mesmo tempo, os linfócitos B, células do sistema imune responsáveis pela produção de anticorpos, também são induzidas a fazer seu trabalho, reforçando ainda mais a imunidade.

“Com o objetivo de induzir imunidade mediada por anticorpos e células T, peptídeos (pedaços de proteínas) do Sars-CoV-2 que sejam amplamente reconhecidos por essas células devem ser incorporados em uma construção de vacina com a proteína spike ou o domínio RBD”, defende o imunologista Jorge Kalil, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), diretor do Laboratório de Imunologia do InCor e coordenador do iii.

O grupo de pesquisa liderado por Kalil desenvolve sua vacina baseada na definição de alvos moleculares para desencadear uma resposta imune humoral e celular equilibrada e forte. “Essa vacina deve induzir uma resposta de anticorpos neutralizantes contra o Sars-CoV-2, enquanto também induz forte imunidade celular, incluindo linfócitos T CD8+ citotóxicos, que matam células infectadas, e T CD4+, que fornecem ajuda para a produção de anticorpos e respostas citotóxicas”, conta Kalil.

Diversidade de respostas

Outro importante elemento envolvido nas respostas imunes estudadas no iii é o HLA, da sigla em inglês para human leucocyte antigen (antígeno leucocitário humano). Trata-se de um grupo especial de proteínas localizadas na superfície de quase todas as células do corpo humano, responsáveis pela apresentação de peptídeos aos linfócitos T, o tempo todo.

Os peptídeos são derivados de proteínas que estão no organismo e também de moléculas “estranhas”, como aquelas de um vírus que invade o organismo. As moléculas HLA – que podem ser consideradas nossa identidade molecular – têm uma enorme diversidade de variantes, determinadas por genes localizados no cromossomo 6 de cada indivíduo. Elas estão presentes em maior ou menor frequência em diferentes etnias. Isso, somado às experiências imunológicas do indivíduo, torna única a maneira como as moléculas “estranhas” e as do próprio organismo são apresentadas ao sistema imune, estimulando diferentes respostas imunológicas ao longo da vida.

Para produzir a vacina nasal do iii, um passo fundamental foi a definição de quais partes do vírus – na forma de peptídeos – ligam-se, de forma abrangente, a uma maior diversidade de moléculas HLA, de modo a aumentar a chance de a vacina estimular respostas imunes celulares. Assim, foram selecionadas partes de diferentes moléculas do vírus que se quer combater, como fonte de antígeno vacinal – não simplesmente o vírus inativado ou a proteína da espícula. Para isso, foram estudadas, em 2020, 220 pessoas que tiveram a doença, das quais foi colhido sangue contendo células do sistema imune e anticorpos um mês após os sintomas desaparecerem.

“Essa abordagem permite ampla cobertura das populações geneticamente diversas a serem vacinadas (e que têm uma diversidade de HLA), além da inclusão de epítopos fortes de células T que estão presentes em outras proteínas virais fora de spike”, conta Kalil. Epítopos são a menor parte do antígeno capaz de gerar alguma resposta imune, a região que se liga aos receptores celulares e aos anticorpos.

Também foi investigado, por meio de bioinformática, todo o genoma viral do Sars-Cov-2. Para isso, foram selecionados 66 fragmentos das 36 proteínas que o vírus possui, e a ação de cada um deles no organismo foi estudada para ampliar o conhecimento sobre como ativar tanto as células T auxiliadoras como as citotóxicas.

A partir de todos esses estudos, finalmente os pesquisadores definiram um conjunto de antígenos potentes indutores de respostas imunes e produziram um composto vacinal para o qual serão dirigidas as respostas imunes de anticorpos e as das células T, com a vacina. Agora, essas diferentes peças, que foram identificadas, experimentalmente, passo a passo, estão sendo agrupadas em uma única proteína, que será fabricada em laboratório por uma célula usada na produção de vacina para, em breve, ser testada em humanos, nos estudos clínicos.

Tudo começa pelo nariz

Antes disso, foram testados vários protótipos vacinais em camundongos por instilação nasal. Para tal, também foi desenvolvida uma metodologia em que os antígenos vacinais são colocados em nanopartículas inaláveis.

A vacina nasal protege as vias aéreas respiratórias, que são atacadas pelo vírus, induzindo a produção de anticorpos específicos contra ele. A via de aplicação nasal traz uma vantagem adicional de proteção na própria mucosa do nariz, pois favorece a produção de um tipo de anticorpo localmente, a IgA, além de promover uma resposta humoral sistêmica – em todo o organismo –, o que inclui IgA e IgG circulantes.

Em geral, a resposta imune sistêmica leva à indução de memória imunológica pela geração de células B de memória que permanecem no organismo, permitindo sua rápida ativação e produção de anticorpos específicos frente a novas infecções. A aposta é que a estratégia de vacina nasal promova a maturação e a proliferação dos linfócitos residentes nas vias respiratórias e outras células da resposta imune inata que ficam no local exato da primeira batalha, além da ativação sistêmica e geração de memória imunológica. Com isso, fortalece-se todo o sistema respiratório, promovendo algo que ainda não se sabe se ocorre com as demais vacinas: eliminar o vírus do organismo mesmo em pessoas já curadas ou que nunca desenvolveram doença. “As vacinas atuais evitam a doença, mas não se sabe se impedem que o vírus permaneça nas fossas nasais e na orofaringe, na garganta e no nariz. Dessa forma, quem está vacinado pode não ficar doente, mas portar o vírus e o proliferar pelos ambientes, transmitindo para outras pessoas”, pondera Kalil.

A fim de aumentar a imunidade da mucosa, o antígeno está sendo formulado com nanopartículas para instilação intranasal. As nanopartículas carregadas com antígeno e adjuvante, substância adicionada para potencializar a resposta imune, protegem contra a degradação biológica e facilitam a passagem através de barreiras locais, entregando a vacina às células apresentadoras de antígeno.

Esta abordagem é conhecida por induzir grandes quantidades de IgA secretora, classe de anticorpos específica de mucosas, e também por estimular células T residentes no trato respiratório. A via intranasal é usada, inclusive, em uma vacina viva atenuada contra influenza já comercialmente disponível, induzindo uma resposta imune que é mais semelhante à imunidade natural do que àquela causada por uma vacina injetável.

Próximos passos

Com o protótipo vacinal já definido, os pesquisadores trabalham em um sistema de produção que permita escalonamento e fabricação industrial para concluírem os ensaios em animais e prepararem o início de testes em humanos – que são realizados em três etapas: na primeira, é observada a toxicidade, numa quantidade restrita de indivíduos; na segunda, observa-se a janela terapêutica, quando são definidas as dosagens da imunização e em que quantidade; por fim, um grande número de voluntários é testado, recebendo a vacina ou um placebo.

A vacina proposta é projetada para ser termoestável em temperatura ambiente e com baixo custo de produção, entre 6 e 7 dólares a dose. A estabilidade da temperatura e facilidade de administração facilitariam a imunização de indivíduos em regiões remotas e com poucos recursos em todo o mundo. E o principal esperado: estimular a imunidade sistêmica e forte imunidade no trato respiratório, provocando, também respostas de células T em populações étnica e geneticamente diversas. Como é 100% nacional, também é facilitado seu manejo em caso de variantes do vírus surgidas em qualquer região do território brasileiro, permitindo adaptações da vacina às condições locais com mais facilidade.